Quem não conhecesse aquele homem, poderia até julga-lo preguiçoso.
Gostava de cochilar depois do almoço, (não antes de comer um pedaço de um dos seus doces que eram sempre mantidos escondidos), e também durante o Jornal Nacional, acordando apenas para responder o "boa noite" ao William Bonner.. Pedia para a mulher ou para a filha do meio que lhe preparasse um lanche... sempre pão passado na manteiga com queijo fresco e um copo de leite com toddy.. e antes de dormir, mais um pedaço de seu doce secreto.. as vezes poderia se parecer mais com uma criança que sua filha caçula.
No trabalho, sempre chegava atrasado, e sempre saia antes do horário... "tenho que buscar minha filha no balé..." era sua melhor desculpa, e quando ficava velha ele simplesmente ligava e dizia.. sem o menor pudor para seu chefe: "tou numa diarreia... mal posso me levantar do vaso e já estou de volta..". E a diarreia nem sempre era inventada, com a quantidade de doces que ele ingeria seria de se estranhar que ele não passasse por isso pelo menos uma vez por semana.
No trabalho, sempre chegava atrasado, e sempre saia antes do horário... "tenho que buscar minha filha no balé..." era sua melhor desculpa, e quando ficava velha ele simplesmente ligava e dizia.. sem o menor pudor para seu chefe: "tou numa diarreia... mal posso me levantar do vaso e já estou de volta..". E a diarreia nem sempre era inventada, com a quantidade de doces que ele ingeria seria de se estranhar que ele não passasse por isso pelo menos uma vez por semana.
Apesar disso ele era um dessas mentes criativas... não estava pra burocracias e serviços de escritório... gostava mesmo era de inventar.. desde pequenos contos, passando por obras de arte feitas com vidro e areia, engenhocas eletronicas, algum jogo matemático ou quebra cabeças que ele mesmo desenvolvia, indo até receitas culinárias...
Sem duvidas, quando se metia a chefe de cozinha era quando causava mais confusão, misturava doce e salgado, rapadura e pipoca, criou até um picolé feito de água de coco, com coco ralado e leite de coco (não é nem necessário comentar que desastre era o gosto)...
Mas até que um dia ele acertou uma receita de tapioca, que ao mostrar como fazer declarou ser necessária muita "catigoria" para realizar o feito de jogar a massa pra cima e pega-la de volta sem deixar cair (nunca descobrimos o talento e a "catigoria" que ele tinha para limpar o fogão). Mas o que o tornou mundialmente famoso foi sua receita de pé de moleque, muito elogiado por todos os membros da familia e amigos. Tão apreciado.. que passou a ser escondido no fundo do congelador, com seus outros doces secretos. Apesar da grande repercussão sobre a qualidade do doce sempre me recusei a experimentar, até q na ultima vez, depois de um indelicado "não" recebi do mestre cuca com a mesma rispidez da minha negativa: "mas não é possível! como é chata essa menina"
Doente!
Foi o que disseram...
Conhecendo a fortaleza daquele homem, desacreditei que fosse qualquer coisa mais séria que uma pedra nos rins.
Foram dias sem ir ao trabalho, deitado sem levantar da cama, pelo sangue na tosse suspeitava de uma tuberculose, afastando assim a mulher e os filhos.
Por algum motivo em minha cabeça só se passava a ideia "ele está evitando o trabalho"
Um dia, bem disposto levantou-se da cama, pegou um spray de tinta e sentou-se na calçada para pintar um jarro de barro onde depositava moedas para sua filha mais velha..
"como eu pensava, essa história de doença era só desculpa pra ficar dormindo"
Após pintar o jarro, uma fraqueza, um desmaio, hospital, viajem às pressas à goiania.
E eu.. sempre pensando...
"Quê será essa falta de apetite? dizem que não quer comer.. deve ser diabetes, talvez pressão alta, dizem que tem algo nos rins... Diabos! por que não tiram logo essa pedra? E se ele morrer?
Morrer!!? Não, tipo, deve ser hipertensão, hipoglicemia...isso não mata."
E logo, uma ligação... da mãe...
Então foi viajem às pressas, carro cheio de filhas, cunhada, e genro daquele velho senhor
"ah que bom, aproveitar o feriado né? visitar papai, não sei o que fazem naquele hospital que não o curam logo"
Doce ilusão.
Hospital é sempre o mesmo, todo mundo meio frio, meio com cara de morte, e toda aquela burocracia.. "apenas um de cada vez" era a regra.
De repente se apresenta uma moça alta, magra, psicóloga.. ela dizia que nos acompanharia até o quarto, e estaria ali enquanto precisássemos... pra que? eu ainda não sabia.
Primeiro foi a mãe, partiu firme, voltou aos prantos, apoiada nos ombros da moça magrela, psicóloga...
Me sentei no chão.
Em seguida a filha mais velha, partiu séria e tremula... em meio minuto retornou transtornada, seu choro saia aos berros... se agarrou ao marido e seu corpo chacoalhava a cada soluço.
Me levantei, encostei na pilastra.
A filha do meio sumiu pelo corredor branco, já se segurando na dita psicóloga... esta do meio, voltou praticamente desmaiada, parecia que sufocava de tanto chorar.. sentou num desses sofás de hospital e recebeu água com açúcar, e balbuciava palavras sem sentido, parecendo que iria vomitar.
****
Durante todo aquele tempo aquela foi a primeira vez que percebi a gravidade do problema, era como se a morte gritasse em todos os cantos daquela sala de espera, e os soluços apenas antecipavam uma tristeza ainda mais profunda que estava por vir.
****
Faltavam poucos minutos pro horário de visitas acabar, e todos os olhares se voltaram para a caçula. De repente a sala pareceu estar diminuindo, o ar faltando, e o lugar gelava e esquentava ao mesmo tempo... a menina que se encostava na parede desabou ao chão, chorando soluçado, enquanto tentavam agarra-la, e acalma-la, enquanto a psicóloga magrela dizia:
"Se você não se sentir bem, não precisa entrar, ele vai entender"
Sentia como se a cabeça fosse explodir, o coração fosse saltar e abandonar o peito.
Seu pensamento se perdia, dava voltas... queria fugir, queria acordar.
Queria, precisava, e decidiu! Foi ver o pai.
Aquela caminhada até a porta da UTI foi certamente a mais desesperadora da vida daquela menina.
O corredor parecia ficar cada vez mais estreito, mas a cada passo seu coração estava mais calmo, e os olhos cessaram as lágrimas antes de adentrar ao quarto devidamente esterilizada.
Ao ver o pai, não reconheceu nele nada que se assemelhasse ao homem que conhecia, sua cor era de açafrão, seus olhos fechados e a boca aberta, magro como um daqueles cadáveres dissecados.
A pequena menina se aproximou, beijou o pai, o chamou.. talvez com uma doçura que nunca tinha usado antes
Os olhos cansados se abriram, mas pareciam distantes.. as mãos não se moveram, mas ela as segurava com força... os lábios não eram capazes de pronunciar palavra alguma, e nem era necessário. A menina guardava em seu peito um milhão de palavras e precisaria apenas que ele ouvisse.
Mas enquanto despejava palavras cortadas, e tentava explicar todo seu amor em palavras, e pedir perdão por uma vida inteira de más criações.. a menina percebeu que os "bib bips" que saiam da máquina começaram a aumentar, e dos olhos de seu pai escorriam lágrimas, mesmo que seus lábios não se movessem, e seus braços não tivessem força alguma.
De súbito se calou e tentou beija-lo mais uma vez, quis abraça-lo, mas a cama alta e os fios em seu peito impossibilitavam uma maior aproximação.
Então foram beijos, sorrisos e um "eu te amo" sussurrado bem perto do ouvido, e desejou ouvir sua voz, mas já sabia em sua mente a resposta "também te amo, pretinha do papai".
****
E até hoje, me arrependo por nunca ter provado aquele pé de moleque.
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Sem duvidas, quando se metia a chefe de cozinha era quando causava mais confusão, misturava doce e salgado, rapadura e pipoca, criou até um picolé feito de água de coco, com coco ralado e leite de coco (não é nem necessário comentar que desastre era o gosto)...
Mas até que um dia ele acertou uma receita de tapioca, que ao mostrar como fazer declarou ser necessária muita "catigoria" para realizar o feito de jogar a massa pra cima e pega-la de volta sem deixar cair (nunca descobrimos o talento e a "catigoria" que ele tinha para limpar o fogão). Mas o que o tornou mundialmente famoso foi sua receita de pé de moleque, muito elogiado por todos os membros da familia e amigos. Tão apreciado.. que passou a ser escondido no fundo do congelador, com seus outros doces secretos. Apesar da grande repercussão sobre a qualidade do doce sempre me recusei a experimentar, até q na ultima vez, depois de um indelicado "não" recebi do mestre cuca com a mesma rispidez da minha negativa: "mas não é possível! como é chata essa menina"
Doente!
Foi o que disseram...
Conhecendo a fortaleza daquele homem, desacreditei que fosse qualquer coisa mais séria que uma pedra nos rins.
Foram dias sem ir ao trabalho, deitado sem levantar da cama, pelo sangue na tosse suspeitava de uma tuberculose, afastando assim a mulher e os filhos.
Por algum motivo em minha cabeça só se passava a ideia "ele está evitando o trabalho"
Um dia, bem disposto levantou-se da cama, pegou um spray de tinta e sentou-se na calçada para pintar um jarro de barro onde depositava moedas para sua filha mais velha..
"como eu pensava, essa história de doença era só desculpa pra ficar dormindo"
Após pintar o jarro, uma fraqueza, um desmaio, hospital, viajem às pressas à goiania.
E eu.. sempre pensando...
"Quê será essa falta de apetite? dizem que não quer comer.. deve ser diabetes, talvez pressão alta, dizem que tem algo nos rins... Diabos! por que não tiram logo essa pedra? E se ele morrer?
Morrer!!? Não, tipo, deve ser hipertensão, hipoglicemia...isso não mata."
E logo, uma ligação... da mãe...
Então foi viajem às pressas, carro cheio de filhas, cunhada, e genro daquele velho senhor
"ah que bom, aproveitar o feriado né? visitar papai, não sei o que fazem naquele hospital que não o curam logo"
Doce ilusão.
Hospital é sempre o mesmo, todo mundo meio frio, meio com cara de morte, e toda aquela burocracia.. "apenas um de cada vez" era a regra.
De repente se apresenta uma moça alta, magra, psicóloga.. ela dizia que nos acompanharia até o quarto, e estaria ali enquanto precisássemos... pra que? eu ainda não sabia.
Primeiro foi a mãe, partiu firme, voltou aos prantos, apoiada nos ombros da moça magrela, psicóloga...
Me sentei no chão.
Em seguida a filha mais velha, partiu séria e tremula... em meio minuto retornou transtornada, seu choro saia aos berros... se agarrou ao marido e seu corpo chacoalhava a cada soluço.
Me levantei, encostei na pilastra.
A filha do meio sumiu pelo corredor branco, já se segurando na dita psicóloga... esta do meio, voltou praticamente desmaiada, parecia que sufocava de tanto chorar.. sentou num desses sofás de hospital e recebeu água com açúcar, e balbuciava palavras sem sentido, parecendo que iria vomitar.
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Durante todo aquele tempo aquela foi a primeira vez que percebi a gravidade do problema, era como se a morte gritasse em todos os cantos daquela sala de espera, e os soluços apenas antecipavam uma tristeza ainda mais profunda que estava por vir.
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Faltavam poucos minutos pro horário de visitas acabar, e todos os olhares se voltaram para a caçula. De repente a sala pareceu estar diminuindo, o ar faltando, e o lugar gelava e esquentava ao mesmo tempo... a menina que se encostava na parede desabou ao chão, chorando soluçado, enquanto tentavam agarra-la, e acalma-la, enquanto a psicóloga magrela dizia:
"Se você não se sentir bem, não precisa entrar, ele vai entender"
Sentia como se a cabeça fosse explodir, o coração fosse saltar e abandonar o peito.
Seu pensamento se perdia, dava voltas... queria fugir, queria acordar.
Queria, precisava, e decidiu! Foi ver o pai.
Aquela caminhada até a porta da UTI foi certamente a mais desesperadora da vida daquela menina.
O corredor parecia ficar cada vez mais estreito, mas a cada passo seu coração estava mais calmo, e os olhos cessaram as lágrimas antes de adentrar ao quarto devidamente esterilizada.
Ao ver o pai, não reconheceu nele nada que se assemelhasse ao homem que conhecia, sua cor era de açafrão, seus olhos fechados e a boca aberta, magro como um daqueles cadáveres dissecados.
A pequena menina se aproximou, beijou o pai, o chamou.. talvez com uma doçura que nunca tinha usado antes
Os olhos cansados se abriram, mas pareciam distantes.. as mãos não se moveram, mas ela as segurava com força... os lábios não eram capazes de pronunciar palavra alguma, e nem era necessário. A menina guardava em seu peito um milhão de palavras e precisaria apenas que ele ouvisse.
Mas enquanto despejava palavras cortadas, e tentava explicar todo seu amor em palavras, e pedir perdão por uma vida inteira de más criações.. a menina percebeu que os "bib bips" que saiam da máquina começaram a aumentar, e dos olhos de seu pai escorriam lágrimas, mesmo que seus lábios não se movessem, e seus braços não tivessem força alguma.
De súbito se calou e tentou beija-lo mais uma vez, quis abraça-lo, mas a cama alta e os fios em seu peito impossibilitavam uma maior aproximação.
Então foram beijos, sorrisos e um "eu te amo" sussurrado bem perto do ouvido, e desejou ouvir sua voz, mas já sabia em sua mente a resposta "também te amo, pretinha do papai".
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E até hoje, me arrependo por nunca ter provado aquele pé de moleque.
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